ELO

 


Eu estava pensando no doce sorriso de minha amada noiva há três dias.

 Naquela despedida, por mais que o sol brilhasse radiante e as pessoas rissem a nossa volta, tudo me parecia mórbido. Como eu poderia ficar tantos dias sem olhar para aqueles lindos olhos negros e penetrantes? Seu rosto naquela perfeita simetria repleto de sardas, seus lábios ligeiramente carnudos enquanto me beijavam com ternura. Aquilo era real... Terrivelmente real.

Dizem que temos flashes sobre tudo o que aconteceu em nossas vidas no momento de nossa partida para o outro lado. Bom, realmente temos. No entanto, de alguma maneira, minha mente tomou como ponto de partida o início daquela semana.

Não sei se eram realmente os últimos suspiros, mas queria que me fossem concedidos ao menos a chance de ter aqueles últimos pensamentos. Aquela mulher acordando ao meu lado... aquele sorriso estonteante... 

Era uma segunda-feira, ela comemorava seu aniversário de 25 anos e estava radiante naquele vestido azul turquesa que caia com suavidade pelo seu corpo, iluminando todo salão.

Eu caminhava lentamente em sua direção com uma das mãos atrás das costas segurando uma linda rosa, tão vermelha quanto sangue. Ela olhava em minha direção enquanto abria um largo sorriso. Ah. Como eu tive sorte de tê-la em minha vida...

A música que soava pelo salão era uma melodia serena, mas algo não se encaixava. Não sei se era o efeito das luzes ou a multidão que preenchia o ambiente. Contudo, aquela sensação me perturbou repentinamente. Foi como se alguém apertasse minha garganta e me impedisse de respirar. Minhas mãos começaram a suar e aquela sensação de dormência dominou meu corpo. Um sentimento de pavor...

 Imediatamente minha expressão mudou. Meus olhos lacrimejaram e eu recuei alguns passos para me apoiar em uma coluna. Minha amada, intrigada com a mudança súbita, parou de sorrir.

Respirei fundo para me conter. Não podia estragar aquele momento tão importante. Contudo, aquelas luzes e vozes enchiam minha cabeça; sussurros incompreensíveis que pareciam querer me dizer algo. A sensação de estar sufocando só aumentava. Meu corpo ardia.

Ao longe, minha amada sussurrou em minha direção “você está bem?”

Minha amada?! Não. Aquela mulher não era ela... Os traços faciais deformados, não pertenciam a ela.

Foi quando uma luz invadiu a imensidão. Vultos e aparições se fizeram presentes numa visão turva. Eram meus familiares e amigos. Todos pareciam devastados.

Olhei em volta num completo desespero, mas em um piscar de olhos, tudo voltara ao normal. Exceto por minha noiva que, antes radiante, agora soluçava ao telefone.

Tentei correr em sua direção, mas não importava o quanto tentasse, eu permanecia no mesmo lugar, impossibilitado de alcançá-la. Pude ver seus olhos vermelhos e inchados. Pude ver seu corpo sacudindo enquanto lágrimas lavavam seu rosto... Ela chorava tão profundamente que meu coração se despedaçou.

Queria alcançá-la e dizer-lhe que tudo ficaria bem, mas meu esforço era em vão.

Foi quando o mundo assumiu uma forma irreal e eu já não pude diferenciar realidade de insanidade. Tudo estava em chamas. Corpos mutilados encontravam-se presentes por todas as partes. Sangue. Pessoas gritando por socorro em uma completa agonia.

De repente acordei em nossa cama em um único salto, um único grito.

Assustada, ela se ergue e se agarra em meus ombros. Me encontro em total estado de angustia. Meu corpo inteiro em dormência, minha respiração ofegante e acelerada.

Olho ao meu redor, nosso quarto está totalmente na escuridão, mas percebo algumas estranhas manchas na parede. A única fonte de luz, é proveniente da rua, a qual ilumina em uma luz cintilante o vaso com a rosa que entreguei à minha amada na noite anterior.

– Está tudo bem, meu amor. Foi só um sonho. – Eu me sentia como uma criança que acabara de ter um pesadelo horripilante, mas a voz suave dela fez com que eu me deitasse.

Eu sentia meu corpo encharcado, mas mesmo assim ela deitou-se sobre meu peito sussurrando palavras reconfortantes. Levei minha mão ate seus cabelos ruivos que, para minha surpresa, estavam tão molhados quando o meu corpo.

Olhando ao meu redor novamente, dessa vez com mais atenção, pude perceber que as manchas nas paredes eram de uma coloração estranha. Levantei-me e acendi o abajur.

Nesse momento, uma forte náusea me dominou. Olhei para minha amada e pude perceber que seu rosto estava coberto de um fluido espesso quase preto.

Tentei não entrar em pânico novamente. Não queria assustá-la.

Respirei fundo e controlei-me ao máximo para não vomitar... seus cabelos... aquele liquido viscoso... era sangue!

Fique calmo, disse a mim mesmo mentalmente. Isso não é real... Não pode ser...

Na esperança de que aquela alucinação chegasse ao fim, permaneci imóvel de olhos fechados até o amanhecer.

– Bom dia, meu bem. – disse ela do outro lado do quarto. Devo ter cochilado, pois o sol já irradiava lá fora.

Percebi, com alivio, que tudo voltara ao normal – o quarto, os moveis, seus cabelos sedosos. Cheguei à conclusão de que tudo aquilo fora um sonho doentio. Eu os costumava tê-los quando mais jovem, embora não parecessem tão... reais.

– Levante-se, está na hora – recomendou minha amada. Sua voz estava tão suave que acalmou minha alma.

Levantei-me da cama e corri em sua direção enquanto dizia “bom dia, meu anjo”. Entrelacei-a em meus braços e fechei meus olhos sentindo seu perfume único.

– Hora de seguir – sussurrou ela em meus ouvidos.

Abri meus olhos, confuso.

Estávamos no aeroporto... como fomos parar ali¿ não me lembrava de ter saído de casa – não me lembrava nem de fazer minhas malas! Me afastei dela rapidamente atordoado e, neste exato momento, me vi dentro do avião, segurando meu livro favorito, O Reinado de Kasdeya.

Na minha cabeça, eu escutava uma voz de uma jovem sussurrando meu nome e dizendo para eu não me preocupar, que me amaria eternamente. Quem era? Não conseguia reconhecer a voz

Por um instante, senti aquela sensação novamente. Algo me sufocando e meu corpo ardendo como se estivesse em chamas. Não parecia real... tudo estava fora do meu controle.

Novamente, fui transportado para outro lugar. Estávamos finalmente sobrevoando a cidade.

- Está na hora de partir – sussurrou uma voz infantil ameaçadora vinda de todas as direções.

Eu olhei ao redor assustado e percebi que o avião estava em chamas. Pessoas gritavam dominadas pelo desespero da morte iminente.

- Está na hora de acabar com isso.

O desespero me dominou. As pessoas gritavam cada vez mais alto, clamando por misericórdia enquanto as chamas consumiam suas carnes.

- Quem é você? - perguntei enquanto encarava a criança que segurava uma rosa vermelha e vestia um vestido azul turquesa.

- Você sabe quem sou, bom homem. É hora de me encarar. Não há como se esconder para sempre...

- Não... Não... Isso não é real!

- Venha – a voz infantil dominou a aeronave novamente, repetindo milhares de vezes as mesmas palavras – Encare...inevitável... venha... não há como escapar... venha...

Foi quando exclamei em total desespero enquanto meus olhos enchiam-se de lágrimas.

- Mas e todos os meus sonhos? E minha mulher?

- Já não importam mais. – disse a garota, assumindo a voz de minha amada e se aproximando lentamente de mim – Você deve me esquecer ou sofrerá eternamente. Por favor...

Tantas perguntas se prontificaram em minha mente.

Foi quando, tomado por lágrimas me lembrei da voz que sussurrara em meus ouvidos mais cedo para eu não me preocupar, que me amaria eternamente.  

Era ela. Minha amada. Minha mulher. Sussurrando do outro lado para eu não me prender. E então percebi que ela era o elo que precisava ser rompido. O amor. Nosso amor.

Ela ficaria bem. Eu ficaria bem...

Com um sorriso no rosto, eu seguro sua mão me dando conta de que jamais senti tanta paz quanto sentira ao tocar aquele ser.


G.C. Camargo

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